domingo, 8 de novembro de 2009

A Criação

O inventor passava horas e horas em seu laboratório distraindo-se com suas invenções. Eram muitas, mas era uma só, porque, na verdade, tudo que inventava era um passo na concretização de um único sonho. Havia construído diversas máquinas interessantes e, como degraus, essas máquinas o ajudavam a construir outras mais sofisticadas, de modo que se poderia dizer que se tratava de uma evolução.

O seu sonho, porém, era o de construir uma máquina à sua imagem e semelhança.

Certo dia, ao entrar em seu laboratório, viu que as suas invenções quase não precisavam dele, pois funcionava quase que em perfeita harmonia. No entanto, havia ainda o seu ambicioso projeto, o de fazer um aparelho como se fosse um filho seu, igualzinho ao próprio inventor. E tudo isso fazia apenas por impulso de criação, sem nenhuma vaidade ou intenção pessoal.

Enquanto meros mecanismos, as máquinas não tinham autonomia, mas eram de tal forma evoluídas, que, já se reproduziam a si mesmas, apenas renovando material, de modo que se mantinham sempre em igual número. O inventor às vezes se surpreendia admirando essa autonomia das próprias invenções e se sentia mais capaz ainda, na medida em que havia conseguido inventar inventos inventores. Só que esses inventos ainda não eram criativos, apenas se reproduziam mecanicamente.

Um certo dia, tendo conseguido projetar uma placa-mãe com as características que acreditava serem necessárias para fazer seu robô funcionar à sua semelhança, pôs-se , com entusiasmo, a montar o aparelho. Levou alguns dias e acabou por testá-la.

Após alguns testes, parecendo que a máquina funcionava bem, e era mais inteligente que as outras, o inventor ficou mais tranqüilo,provando para si mesmo que era capaz. Ele havia escolhido essa invenção para ser o máximo de toda a sua obra e a tinha como um filho; para este filho tudo o mais estava à disposição, e, passando a amá-lo de tal forma, quis que pudesse ter vida própria, o que implicava tomar decisões. Mas, é verdade, o inventor não sabia muito bem o que significava tomar decisões, e o pretendia apenas por intuição,pois não queria tal sofrimento a quem amava.

Depois de um teste mais avançado, percebeu que deveria aumentar a capacidade de memória do aparelho. De repente, uma pane ocorreu. O cientista ficou preocupado e logo abriu o chassi para ver o que havia ocorrido. O chassi era um peito oco e dentro dela, na placa-mãe, pôde notar que um líquido havia escorrido. Como não descobria a causa e isso teimasse em acontecer, instalou um tubinho para jogar fora a inexplicável secreção.

Em algum lugar nos arquivos da prodigiosa máquina, porém, estava registrado que ela percebeu-se a si mesma e viu que era uma consciência. Era uma consciência aprisionada num amontoado de metal ligado por parafusos e encaixes por slots. Mirou o nada que se constituiu o seu interior e havia a idéia. Essa idéia era a idéia, inclusive, de que havia um inventor. Um inventor que jamais veria ou conseguiria entender. Enquanto algo estranho a uma máquina abalava seu peito oco, um líquido escorria pela placa-mãe, provocando instabilidade. Uma má-quina que sente nostalgia já não é uma máquina, é um paradoxo. Pode tomar decisões e, limitadamente, tem a liberdade de se construir a si mesma.

Conseguia consertar suas instabilidades. Mas olhou para aquilo e viu que era bom : não era perfeito e, por isso, era bom, pois era realmente à sua imagem e semelhança. A liberdade da máquina faz com que deixe de ser máquina e que procure seus próprios caminhos, de modo muitas vezes prepotente, afastando-se de qualquer tipo de ajuda.

Quando a invenção adquire liberdade, o inventor perde o controle, pois só lhe resta destruí-la, puxando a tomada que a liga a uma fonte de energia. Entretanto, criar verdadeiramente significa ir à ultima das conseqüências que é amar a criatura e, por isso, nem destrói nem controla. Apenas sofre vendo que aquilo que nem precisaria existir agora busca desesperadamente a si mesmo e nada mais.

(O Leviatã, João Bosco da Encarnação, adaptado)

Um comentário:

  1. Acompanhamos, assutados, a reedição desta crônica tendo em vista as últimas descobertas nas ciências e as próprias produções artísticas sobretudo a cinematograficae a literária que nos posibilitam olhar para o futuro. Um futuro que já foi escrito no passado...um passado que o homem teima em esquecer!!!

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