domingo, 25 de outubro de 2009

Ignorância para Ignorantes

A sofística e a retórica são criações gregas. Os gregos criaram-nas quando um pouco por toda a Grécia a democracia começou a substituir as antigas monarquias e oligarquias. O novo regime impôs a palavra como forma de acesso e de exercício do poder e o seu fascínio e capacidade persuasiva rapidamente conduziram à formulação de técnicas oratórias cujo domínio assegurasse a vitória nos debates públicos. Os jovens ambiciosos de então não tiveram dificuldade em perceber a enorme vantagem que o domínio destas técnicas representava e, para responder à procura, surgiram por todo o lado professores de sofística e de retórica, os mais famosos dos quais foram Protágoras e Górgias. Assim, a retórica e a sofística adquiriram rapidamente um lugar central na educação e na vida pública gregas.

Os primeiros críticos dos sofistas e dos oradores foram também gregos e seus contemporâneos. Sócrates foi um desses críticos, mas o fato de não ter escrito nada impede que conheçamos com rigor as suas ideias sobre o assunto. Assim, o primeiro crítico influente da sofística e da retórica foi Platão. A crítica aos sofistas e oradores ocupa mesmo um lugar importante na sua obra. A retórica é a arte da persuasão pela palavra e Górgias, no diálogo de Platão com o mesmo nome, elogia o fato de, pelo seu domínio, ignorando tudo sobre aquilo de que se fala, ser possível persuadir alguém melhor do que um especialista. Platão não contesta esta ideia que é motivo evidente de orgulho entre retores e oradores. Em vez disso, prefere realçar que esta capacidade só existe na condição de não só o orador, mas também o auditório ser ignorante sobre o tema, isto é, na condição da situação ser a de um ignorante a falar para ignorantes. O orador não pode ser mais persuasivo que um entendido para um auditório de entendidos.

A democracia ateniense desapareceu há muito, mas os sofistas e os oradores não desapareceram com ela. Prosperaram no império romano e reapareceram em força no século XX quando a democracia, pelo menos no ocidente, voltou a ser o regime preferido. Os advogados e os políticos são os sofistas da atualidade. Mas não são os únicos. De uns anos a esta parte, muito por força das televisões (a que mais resistiu a isto foi a SIC, mas recentemente e timidamente acabou por aderir), surgiu uma nova figura de sofista, a do comentador generalista. Os comentadores generalistas destacam-se pela capacidade de opinar sobre qualquer assunto. Miguel Sousa Tavares, Pacheco Pereira, Santana Lopes e Marcelo Rebelo de Sousa são talvez os mais conhecidos. Este último soube elevar-se de há algum tempo a esta parte à posição de comentador/sofista incontestado. Tal como os sofistas e oradores gregos, que reivindicavam dor -, como o saber enciclopédico, a capacidade de responder a qualquer pergunta ou falar persuasivamente sobre qualquer tema, também MRS soube criar a mesma imagem ― uma vez mais de saber enciclopédico, de grande capacidade de leitura, de escrita a duas mãos ― da qual se alimenta o seu ethos, sobretudo em temas que estão claramente fora da esfera da sua competência. Combinando isto com inegáveis dotes comunicacionais, o domínio incontestável dos temas da sua área e uma análise política frequentemente ao nível da análise social da Caras ou da VIP ― mas, tal como esta, tão do gosto dos portugueses -, MRS soube granjear uma autoridade como opinion maker que, se nada de estranho acontecer, manter-se-á por muitos anos.

Se esta autoridade é merecida não nos interessa aqui. O que nos interessa ― pelo menos para já ― é chamar a atenção para uma estratégia destinada a reforçar o seu ethos e a que MRS recorre frequentemente quando fala de assuntos que reconhecidamente estão fora da sua área. O primeiro passo desta estratégia consiste numa afirmação de ignorância sobre aquilo de que vai falar. Isto é feito com uma frase do tipo: "Esta não é a minha área, mas informei-me e...". O efeito, pretendido e conseguido, não é a afirmação de ignorância mas a da autoridade adquirida. Com esta expressão, MRS garante para si um ethos, uma credibilidade, que lhe permite falar com autoridade e persuasão sobre o tema. A partir daqui MRS é imparável e é costume nos dias seguintes ouvirmos em conversas de café a expressão "como o Marcelo disse..." enunciada como argumento de autoridade que esclarece ou encerra em definitivo uma questão.

Vimos esta estratégia ser aplicada a propósito do adiamento para 1 de Agosto da publicação das notas da 1.ª chamada dos exames nacionais do 12.º ano. Depois da habitual declaração de ignorância, MRS explicou as razões que levaram o Ministério da Educação a adiar a saída das notas. Segundo disse, o ME verificou que em 1 % dos exames tinham existido diferenças de oito e nove valores na classificação em provas idênticas de alunos diferentes. Se fosse esse o caso, como MRS disse, o ME teria procedido corretamente. Mas não foi porque é impossível que tivesse sido. E é impossível porque seria impossível que o ME o fizesse em tempo útil. A única forma de verificar que duas provas com níveis de resolução idênticos têm diferenças importantes de classificação é comparando o conteúdo das provas e as cotações atribuídas pelo examinador a cada questão. Fazer isto para 1% das provas realizadas, o que significa algumas dezenas de milhar de provas, não só exigiria grandes recursos logísticos e humanos como demoraria um tempo tal que ainda hoje estaríamos à espera do resultado. O que o ME fez, como os jornais noticiaram na altura, foi outra coisa. Comparou os resultados obtidos pelos alunos nos exames com as classificações de frequência (isto é, as notas do 3.° período), coisas simples de fazer com os meios informáticos usados na gestão do processo de exames, e foi em relação a essa comparação que verificou existir uma diferença de 1%.

Perante isto, terá a decisão do ME sido correta? Ora, nas circunstâncias descritas, 1% não só é pouco como anormalmente pouco. Com efeito, basta pensarmos nos casos em que, quaisquer que sejam os motivos, os professores atribuam uma classificação final de frequência superior à que o aluno efetivamente merece e nos casos em que os alunos não estudaram, ou não estudaram o suficiente para o exame, para chegarmos a esta conclusão. Por conseguinte, o que o ME deveria ter feito era tentar perceber porque essa percentagem é anormalmente baixa e, a adiar a publicação dos resultados dos exames, seria para isso e não para corrigir eventuais erros na classificação das provas, que foram certamente poucos e para os quais existem mecanismos legais como os recursos.

Assim, MRS deu uma informação errada aos telespectadores e levou-os a pensar que a decisão do ME foi correta, quando na realidade não foi. Uma vez mais, um ignorante ao falar para ignorantes, conseguir persuadi-los de que o que é falso é verdade. E isso, claro, não é bom.

Álvaro Nunes, 2003


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