sábado, 31 de outubro de 2009

A Esponja

Em conseqüência dum acidente de automóvel, que o fez dar forte cabeçada, certo cavalheiro perdeu a memória, conservando intactas as demais faculdades. Se para alguns a perda dum único setor das próprias recordações pode ser uma felicidade, para esse cavalheiro foi um infortúnio que o atingiu na profissão. Ele era professor de literatura. Quando lhe retiraram as ataduras, o professor esquecera os nomes mais populares: Homero; Dante; Cervantes; Goethe; Hugo. Ficava-lhe, contudo, inalterado, o senso crítico – é este um dos aspectos mais singulares de sua desgraça. O ex-professor conservava a faculdade de dizer: “Isto é bom, isso é mau, aquilo é sofrível.” Delidos o juízos alheios, estratificados e superpostos – o que se denomina cultura – o senso crítico ficou a lavar-lhe o cérebro, como se uma esponja embebida num detergente lhe houvesse restituído a serenidade de um julgamento que nós já não temos, perante os autores consagrados pela glória e as suas obras-primas.

Apresentaram ao desmemoriado uma página de Platão. Ele leu e disse:

– Medíocre. Idéias que podem nascer na cabeça de qualquer um.

À vista de um soneto de Petrarcas, sentenciou:

– Todos podem apaixonar-se; mas escrever poesias tão tolas é coisa que se não deveria permitir a ninguém.

Declaro desde já que não dou muito crédito a essa história, lida num recorte de jornal francês, enviado por um leitor anônimo, sem data nem título. Se bem que em assunto de localizações cerebrais, estejam hoje pouco mais adiantados que quando Gall, meio cientista e meio charlatão, inventou a frenologia, estranho essa cisão tão nítida entre cultura e censo crítico, dado que a crítica não pode fazer abstração duma infinidade de valores e de estimativas concernentes ao tempo e aos homens, inclusos justamente no setor da memória que o professor teria perdido.

A ser verdade, isto é, se com um choque aplicado cientificamente por um técnico, num ou noutro ponto do crânio, fosse possível restituir a virgindade ao nosso cérebro, que inversão de obras! Se pudéssemos remover todos os empecilhos culturais da memória, dum homem inteligente, professor de universidade, crítico da imprensa, leitor de bom gosto, e dar-lhe a alegria primitiva de receber sensações novas, de emitir juízos, sem se basear em juízos e avaliações anteriores, a que saltos violentos de cotações assistiríamos! Se um crítico ignorasse a existência de Modigliani e de Utrillo e, em consequência o movimento desses artistas, o juízo do crítico retrocederia ao tempo em que Utrillo se vendia por cinco francos e os Modiglianis escoravam pilhas de queijos, nas adegas dum restaurante a que o autor os deixava em garantia.

Quantos aforismos, quantos apoftegmas, quantos ditos memoráveis, já consagrados e indestrutíveis, ficariam sem valor, como uma passagem de trem chegado ao destino! A rubrica ilustre dá-lhes um valor que já não discutimos. Contudo, se folhearmos uma coletânea de máximas e sentenças sem cuidar das firmas, verificaremos que a maioria dessas frases memoráveis pode perfeitamente sair da boca do dono da mercearia fronteira.

Um exemplo: transcrevo-lhes duas frases extraídas de duas obras teatrais:

“Por que, por fim de contas, a verdade é a verdade.”

“Ah! Sim, meu amigo, dizia-me o barão Ehrenthal – o Oriente é o Oriente.”

À segunda frase, que pertence a uma “pochade” não me lembro de se Hennequin e Weber ou de De Flers e Caillavet, o público se ri. Mas o mesmo público, ouvindo “A verdade é a verdade”, fica absorto ou indiferente: ou, pelo menos não se ri. Por quê? É que “Averdade é a verdade”, asneira análoga a “o Oriente é o Oriente”, traz a firma respeitável de Shakespeare.

O respeito à autoridade inibe-nos de sermos objetivos. A meu filho, que ao ver-me desligar a navalha elétrica, me pergunta se não ficou um pouco de eletricidade no fio, respondo um “não” categórico. Não teria a mesma certeza se tivesse de responder a Einstein.

Um jovem autor desconhecido apresentou a um produtor cinematográfico uma sinopse, isto é, um enredo de filme. O produtor leu-o com atenção, desatou a rir e chamou o jovem autor.

– Isto não tem pés nem cabeça! Escute! Um homem rico e poderoso apaixona-se loucamente pela mulher do irmão. Assassina o irmão, casa-se com a viúva. O filho do irmão é acometido de neurastenia e finalmente enlouquece. Enamora-se de uma jovem que se atormenta por ele e perde a razão. Os apaixonados suicidam-se; a mãe envenena-se; a jovem afoga-se; o filho, antes de morrer, liquida o padrasto. Vamos, vamos, rapaz, – concluiu o produtor, deitando-se na poltrona, com o ventre vibrando de riso como um sismógrafo – isto não é um enredo. Ninguém poderia fazer um filme com essa mixórdia.

– Entretanto, – objetou-lhe o moço brandamente – este argumento, com outro título, teve certo sucesso.

– Que título? – acudiu o produtor.

– Hamlet.

Não passara no cérebro desse produtor a esponja que apaga os juízos consagrados, os valores estabelecidos. Mas a história de Hamlet, ouvida pela primeira vez, encontrou nele a frescura de julgamento que teríamos nós, se o “ser ou não ser”, em lugar de trazer um nome insigne, fosse pronunciado por esse desconhecido que vai passando.

Não pretendo dizer com isto que a frescura do julgamento seja elemento de infalibilidade. Depois da estréia de “La Bohème” de Giacomo Puccini, o crítico musical da “Gazzetta Del Popolo” escreveu:

“Perguntamos a nós mesmos o quê pôde impelir Puccini para o declive deplorável desta ópera.”

O crítico musical do outro diário de Turim – “La Stampa” – opinou: “Assim como não deixa grande impressão na alma dos espectadores, esta ópera não deixará grande rasto na história de nosso teatro lírico. Será bom que o autor a considere erro dum momento.”

Como vemos, não é fácil ser profeta. E não sei se é mais difícil andar sem atender à opinião alheia, ou norteando-se por ela. Somos como o carregador que dizia:

– Estou tão habituado a carregar malas, que, não tendo malas, não sei onde hei de pôr as mãos.

Dino Segre – Pitigrilli

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